Pela metade

Ultimamente tenho te visto em rostos que não são seus. Chego mais perto e minha visão fica meio turva, meio confusa, meio vazia, perdida no nada do tudo à minha volta. Esbarro em pessoas pelas ruas. Já não sei pra onde vou. Já não sei pra onde quero ir.
Descanso as pernas no banquinho de madeira e acendo um cigarro observando as luzes acesas da cidade que vive lá embaixo apesar de. E o mundo aqui dentro parece que deu um time, parece que cansou. O vento bate no meu rosto e bagunça meu cabelo sem corte, parece trazer teu perfume. Parece trazer você.
A palha vai queimando... Lentamente, vai queimando... por dentro e por fora. Finos feixes de sol invadem meu quarto, antes, nosso. No banheiro, a escova de dentes junto à minha, um sutiã jogado no canto, ao lado, e cabelos pelo chão. Me olho no espelho. Minha imagem sente dó de mim. Não faz tantos dias que ela se foi.
Abro a janela e deixo o dia nascer pra mim cheio de cores, embora eu ainda seja noite, ainda seja dores. A poesia tem lá suas contradições. Olho pro sinal e vejo teu rosto sorrindo de longe, fazendo careta de sol. Teus cabelos escuros balançam enquanto passa pela faixa de pedestres. Sorri. Como da última vez em que te vi. Naquele dia que você juntou suas coisas e saiu de short, chinela e minha camisa dos Beatles, carregando sua coleção de Jane Austen.
Sorri. Desci pra te encontrar, corri pelas escadas de toalha no ombro. De coração acelerado, não te encontrei. Carros, prédios, pessoas ao telefone. Pisquei. Não era você, era minha vontade.
Fecho os olhos e vejo que todos os pontos na escuridão tem suas diversas caras. Abro novamente e vejo que cada reflexo de luz tem os olhos dela. E, em cada breve intervalo de piscar de olhos, posso ouvir sua voz implicando com minhas meias no meio das suas calcinhas.
Não sei quantas vezes ainda vou confundir o rosto dela pelas ruas, não sei ainda quantos desconhecidos vou ter que conhecer até esquecer do seu sorriso. Olho pra foto na cabeceira da nossa cama e lembro do dia, lembro de tantos outros dias felizes emoldurados pela casa. Guardo na gaveta. Guardo todos na gaveta. Porque agora ela é apenas isso, um rosto emoldurado com carinho e saudade no meu coração.
Ela não foi totalmente, mas eu também preciso ir, nem que seja também pela metade.

Comentários

Ariana Coimbra disse…
Quando passamos a enxergar "ele" em outras pessoas é porque a saudade se misturou com o amor e nós deixou malucas.
A gente lembra a cada instante, em cada detalhe do dia, em tudo que fazemos e ás vezes dói por sabermos que não vamos ter mais.
Ai nos resta pegar aquela fotografia que ficou e soltar um sorriso bobo, aquele meio de lado e sonhar que tudo seja diferente.
Belo texto lindona!

Beijos

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